Quando a afectividade fala mais alto
Vovóoo… tioooo…, quero fazer pipiiii… estas são as palavras que mais se ouvem em transportes escolares dirigidos por indivíduos que, no passado, ganhavam a vida labutando como motoristas de semi-colectivos de passageiros (chapas) ou de veículos de empresas,… entre outras ocupações. O novo ambiente obriga a mudanças, de forma natural ou compulsiva: “Já troquei a fralda a um bebé de um ano e pouco cheia de popó)”. Sim. São ossos do ofício. Haja sensibilidade, zelo e paciência para lidar com um mundo simplesmente sensível, repleto de ‘flores que nunca murcham’. domingo foi atrás, e traz essas histórias que fazem o dia-a-dia de zeladores de pedais e de almas. O serviço de transporte escolar entrou na moda há já alguns anos. Enfeitados de bonecos, de design de brinquedos, até aos mais simples e descuidados, estes meios circulam em grande proporção pela cidade de Maputo e arredores concorrendo para levar atempadamente, de casa à creche ou escola e vice-versa, alunos com idades que variam de um a dezassete anos ou um pouco mais, a uma velocidade que, segundo afirmaram os condutores que connosco conversaram, “não tem passado dos sessenta quilómetros por hora”. Feitas algumas anotações, doravante domingo narra episódios vividos por Almeida Nguenha (vovó Almeida); Valdemiro Buace; Felizardo Mavui (tio Fefas); Inácio Macie; Félix Bule e Maurício Sitoe (tio Mauro ou mano Mauro), cidadãos moçambicanos que, a dado momento das suas vidas, decidiram trabalhar como motoristas de crianças, fazendo transporte escolar. Almeida Nguenha, residente em Maputo, dedica-se a esta labuta, já lá vão mais de quinze anos. “Quando fui desmobilizado do exército, optei por fazer este trabalho para sustentar a minha família. Praticamente, saí da tropa para trabalhar com crianças”. Ora, tendo em conta a rigidez de um militar, de que forma Almeida Nguenha poderia lidar com as travessuras de menores de idade? Questionámos, ao que prontamente respondeu: “tenho o dom de cuidar de menores de idade. Não foi, em nada, difícil passar a fazer este trabalho. E, uma vez que lido com bebés, conto com a ajuda de uma assistente”. De contrário Vovó Almeida, como é tratado pelas crianças, teria que andar aos trambolhões para zelar por elas quando, em plena viagem, “bolçam; pedem para fazer pipi (necessidades menores);chamam pelo meu nome, mais de dez ao mesmo tempo”. Tem mais: “quando uma pede para fazer pipi, todas outras imitam-na, disse aos risos, mas, acrescentou, é um trabalho gratificante”. Certamente, pois este é também o sentimento de Valdemiro Buace, residente na Matola, que trabalha como transportador escolar há cinco anos. Se no passado não encontrou encanto em ocupações como barman e camionista, hoje em dia ri à toa por trabalhar por conta própria e com crianças. Facto maravilhoso pois “nós formamos uma família”. Lida com meninos dos seis aos treze anos num ambiente que descreve como “agradabilíssimo”, pois“gosto do que faço. Aqui todo mundo é amigo, não importam as posses de cada um. E a naturalidade e o amor das crianças transformam qualquer um”. Com efeito, esses milagres ocorrem na vida de qualquer pessoa. Que o diga o tio Fefas, como é carinhosamente chamado pelas crianças. Felizardo Mavui, residente na Matola, transporta criançasde 1 aos 16 anos. Anteriormente, como motorista de adultos (prefere assim dizer), levava uma vida um tanto a quanto “stressante”. Para ele “virar-me com crianças é muito melhor”. Pois sim, a palavra é mesmo essa virar-se, já que “certo dia, troquei a fralda aum bebé de um ano e pouco cheia de popó (necessidades maiores)”, disse aos risos. É muita responsabilidade, domingo entende e Félix Bule, outro transportador, residente na Matola, reforça a ideia ao afirmar que de outra forma não poderia ser pois os pais das crianças são, por seu turno, exigentes.Mas, mais do que isso, considera,“temos que cuidar deles como se fossem nossos filhos, muitas vezes dormem no carro, pois buscámo-los muito cedo, por volta das 5 e 20”. Na verdade, “crianças são crianças”, resume Maurício Sitoe, também matolense, que trabalha há quatro anos como transportador escolar. Já teve que se posicionar como “inflexível”, quando trabalhava como chapeiro. Hoje, tio Mauro ou mano Mauro, como é chamado pelas crianças, é um homem transfigurado. Um breve comentário de sua esposa, que se encontrava momentaneamente no local da conversa, permitiu o seguinte registo: “ele é outro homem: mais dócil, compreensivo, paciente”. O mundo infantil tem a magia de transformar, de dulcificar. Mais provas? Trá-las Inácio Macie que não titubeou ao afirmar que se trata de um universo inverso ao do chapeiro. “Primeiro, porque requer muita atenção, rigorosidade, pontualidade e, acima de tudo paciência. Até porque, nos primeiros dias, há muita barulheira dentro da carrinha. Umas choram por não quererem ir à escola, outras porque estão cheias de sono”. E é nestas circunstâncias que entra a mão do motorista do transporte escolar, quando “colocamos o coração ao serviço das crianças”, afiançou-nos.
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